Ricardo não conseguia conter o deus que ele mesmo alimentara diante de si. Os pedestres, os mendigos, os policiais, os pastores e o resto da sociedade não passavam de lixo para ele. Todas as vezes nas quais ele se olhava diante do espelho, via o Sol em seu rosto, como se ele fora a própria luz. Embora tivesse um QI extremamente alto, não conseguia desembaralhar a própria mente. Suas ex-namoradas tiveram que fazer tratamento psquiátrico, pois Ricardo deixara-lhes um espinho na carne praticamente impossível de se remover. Na infância, Ricardo costumava apelidar todos os coleguinhas de turma. Todos os colegas de trabalho que tentavam discutir com ele se sentiam reduzidos a pó, pois ele não aceitava nenhum desaforo e nem tampouco considerava a possibilidade de estar equivocado. Os anos foram se passando e ele continuou cultuando a si mesmo, como se cada centímetro do universo tivesse a obrigação de reverenciá-lo. Na época em que seus pais estavam vivos ele os ameaçava dizendo que iria denunciá-los por maus tratos. Sua mãe o colocara de castigo fazendo-o ajoelhar-se nos caroços de milho. Ricardo fugiu de casa e teve de se virar sozinho. Nas ruas ele era espancado pelos marginais das facções. Embora estivesse nas ruas, um policial o encontrou e o adotou. No entanto, como nem tudo são águas cristalinas, o policial o batia constantemente, pois esperava de Ricardo um filho prodígio. Ricardo cresceu apanhando dolorosamente e tornou-se um jovem rebelde de 18 anos. Ele xingava a maioria dos professores da faculdade e mandava a diretora ir pro inferno. Depois de se formar em Ciências Humanas, ele trabalhou em uma das melhores clínicas psquiátricas. Após 43 anos de carreira aposentou-se e desfrutou de sua aposentadoria. Entretanto, sua consciência pesava mais que uma baleia de duas toneladas. O espelho açoitava-lhe a alma, como se a juventude fosse uma piada ultrapassada. A única companhia que ele tinha eram os candidatos a vereadores em época de eleições, e o carteiro, que aparecia de vez em quando. E no dia de sua morte, ninguém aparecera para pranteá-lo, pois em vida, Ricardo não fizera nenhum amigo. Ao ser enterrado, um casal de católicos aproximou-se da cova, acendeu três velas e as enfiou na terra seca. Depois de terem rezado Ave-Maria, foram para casa. O fogo das velas bruxuleava naquele solo duro e infértil. Alguns minutos depois algumas gotas d'água começaram a cair. A chama das velas lutava para manter-se acesa, no entanto, a chuva começara a engrossar e o fogo apagou-se. E tudo o que restou naquele dia foram nuvens acizentadas e um céu solitário.

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